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Publicado: 09 Setembro 2019
A matéria publicada pela revista Veja em 05 de setembro de 2019 com manchete “Por que a dieta vegetariana pode aumentar riscos de derrame” foi recebida com indignação pelo Departamento de Saúde e Nutrição da Sociedade Vegetariana Brasileira. A forma com que o veículo lida com a interpretação e enfoque de resultados de estudos leva à conclusões que desviam a atenção do público e desmerecem o principal foco que, neste caso, é de grande valia como forma de incentivo à dieta vegetariana que, não somente neste trabalho científico como também em robustas revisões sistemáticas publicadas, está comprovadamente relacionada à um caráter redutor de incidência de doenças cardiovasculares que infelizmente, representam a maior causa de morte humana no mundo.
O foco do estudo em questão largamente avaliado e discutido abaixo não foi fazer uma correlação entre possíveis deficiências nutricionais (Vitamina B12, D, ômega 3 e aminoácidos essenciais como citado na matéria) e a incidência de doenças cardiovasculares e sim avaliar tais incidências de acordo com os diferentes padrões dietéticos uma vez que o estudo não foi capaz de mostrar isso, metodologicamente o estudo não avaliou níveis bioquímicos da totalidade dos indivíduos estudados e em sua conclusão deixa claro que, para a afirmação de qualquer associação serão necessários mais estudos.
O recentemente estudo foi publicado no Bristish Medical Journal (BMJ), é uma nova análise da coorte prospectiva EPIC-Oxford, que dentre outros aspectos, investiga os efeitos de padrões alimentares na saúde e no bem-estar dos britânicos. Os pesquisadores avaliaram a relação entre a incidência de doenças cardíacas isquêmicas e acidentes vasculares encefálicos (incluindo os tipos isquêmico e hemorrágico) e diferentes padrões alimentares, categorizados em 3 grupos: os “consumidores de carnes” (definidos no estudo como pessoas que consumiam carnes de todos os tipos independentemente de consumirem peixes, laticínios e ovos), os “consumidores de peixes” (que apenas não consumiam carnes) e os “vegetarianos” (4,2% dos quais eram veganos/vegetarianos estritos).
O estudo analisou dados de 48.188 indivíduos de 20 a 90 anos recrutados no Reino Unido entre 1993 e 2001 e seguidos por cerca de 18 anos. Foram aplicados questionários (90% dos quais através de envio postal), contendo perguntas do tipo: “você come qualquer tipo de carne (incluindo bacon, presunto, aves, tortas de carne, salsichas e carnes de animais selvagens)?”, sendo que do total de participantes, somente 28.364 (pouco mais de 50% da população do estudo), responderam os questionários postais enviados ao final do período de acompanhamento, relatando dados acerca dos seus hábitos alimentares naquela ocasião (para determinar se durante o seguimento, não houve mudanças no comportamento alimentar e portanto, na categorização em 1 dos 3 grupos). Há de se observar, portanto, que durante todo o período do estudo, apenas um inquérito alimentar foi realizado em cerca da metade dos seus participantes e apenas em uma ocasião (no seu fim), desconsiderando todo o universo de possíveis reclassificações que possa ter ocorrido durante todo o seu transcurso. De fato, ao se analisar as respostas dos 28.364 participantes respondedores ao questionário de seguimento, apesar da constatação de que 96% dos consumidores iniciais de carne continuaram a consumi-la, observou-se uma reclassificação do grupo alimentar inicial em 57% dos consumidores de peixes e em 73% dos vegetarianos (e considerando ainda que 19.824 participantes não responderam este questionário final, esta taxa de reclassificação entre os vegetarianos poderia ter sido ainda maior).
Não obstante, à despeito das limitações metodológicas mencionadas anteriormente, os dados apresentados por Tong e colaboradores nesta nova análise do EPIC-Oxford mostram que os indivíduos que seguiam uma dieta vegetariana (apesar de mais jovens) apresentavam melhores marcadores de saúde do que aqueles que consumiam carnes, conforme pode ser observado na tabela de características basais dos participantes do estudo (Tabela 1 - página 5), que evidencia a menor prevalência de comportamentos nocivos à saúde como tabagismo, sedentarismo, hipertensão arterial, dislipidemia, diabetes, obesidade, menor carga de medicamentos para doenças crônicas, além de valores menores de pressão arterial (sistólica e diastólica), colesterol total e colesterol não-HDL, aferidos pelos próprios pesquisadores e considerados universalmente importantes intermediadores para a ocorrência de doenças cardiovasculares (dentre as quais o acidente vascular encefálico). A análise do material suplementar expande ainda mais esta compreensão, ao exibir de forma separada as características basais dos indivíduos veganos (tabela suplementar 1 – página 2), demonstrando a existência de um “espectro”, em que, quanto maior a exclusão de alimentos de origem animal na dieta dos participantes, menor a prevalência destes fatores mencionados acima. De fato, o principal e incontestável resultado desta análise do EPIC-Oxford é que os indivíduos que não consumiam carnes apresentaram menor incidência de doença cardíaca isquêmica, quando comparados àqueles que consumiam tais alimentos. Tais achados, portanto, vém a reforçar a associação demonstrada em outros estudos observacionais e revisões sistemáticas com meta-análises de estudos observacionais que padrões alimentares vegetarianos possuem um papel redutor na incidência de doenças cardiovasculares como um todo (considerada a principal causa de morte e incapacidade no mundo) e esta DEVE SER a principal mensagem deste estudo a ser anunciada e enfatizada ao grande público.
Paralelamente, é apresentada uma associação entre o padrão alimentar vegetariano e uma maior incidência de acidente vascular encefálico do tipo hemorrágico. Entendemos que tal associação deve ser considerada apenas exploratória, justificada pela própria natureza observacional do estudo (incapaz de estabelecer relações de causa e efeito) e pela baixa incidência destes desfechos na população analisada (passível de maior influência de vieses aleatórios) que determinam menor “precisão ou consistência” das relações encontradas. Ainda, há de se avaliar cuidadosamente as limitações relativas ao modelo estatístico de ajuste das covariáveis escolhidas pelos pesquisadores entre os consumidores carne e os vegetarianos e que poderiam intermediar a associação encontrada (confundimento residual). Portanto, muitos fatores (metodológicos e populacionais) devem ser considerados e melhor compreendidos para que se possa realmente deliberar sobre a veracidade acerca desta relação. De fato, conforme os próprios autores expuseram na conclusão do trabalho, essa associação deve ser melhor avaliada em estudos futuros antes que possa ser generalizada e ter a sua relevância clínica e de saúde pública apurada. Não obstante, chamamos a atenção para o fato de que, ainda que seja considerado o pior cenário, isto é, de que tal associação seja de fato representativa da verdade, há de se observar que, em números absolutos, a incidência de doença isquêmica do coração é absolutamente superior a de acidente vascular encefálico do tipo hemorrágico, de forma que, não somente o nível de precisão em relação a associação entre o padrão alimentar vegetariano e a menor incidência de doença isquêmica cardíaca é maior, como o impacto populacional deste efeito e também sobre o saldo geral acerca da saúde dos indivíduos é muitas vezes superior, já que a cada evento cerebral hemorrágico ocorrido dentre os vegetarianos, muitos outros eventos cardíacos isquêmicos serão prevenidos.
Resposta à matéria publicada na Revista Veja em 05 de setembro de 2019.
Alessandra Luglio CRN-3 6893
Coordenadora do departamento de saúde e nutrição da Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB)
Daniel Cosendey Gamini CRM – 52779032
Diretor Científico da Associação Brasileira de Médicos Vegetarianos (ABMV)